LiteraturaMeu Cantinho

Conto: Cicatriz de um Amor

Como um suicida, eu me joguei do penhasco. Me joguei com toda força, pois olhando lá de cima tudo o que eu via era a imagem do cara que eu estava apaixonado e era tão bonito no começo…

Era o meu primeiro dia no meu primeiro emprego. Desci da van junto com meus futuros colegas de trabalho, que até então não tinham me enxergado, e os segui até o grande armazém onde iríamos passar o dia trabalhando, eles com suas determinadas funções e eu como assistente administrativo. Meus primeiros dias como assistente naquele armazém não foram fáceis. Sofri um pouco até aprender as minhas novas funções e demorei pra me acostumar com aquele horário de trabalho das 13:00 às 22:40. Quase nenhum operário falava comigo naquela empresa, nenhum deles era receptivo, exceto um…

– Oi Lucas. – disse ele enquanto arrumava uma série de caixas com creme dental.
– Oi. – respondi. – Seu nome é André, não é?

É claro que eu sabia o nome dele. Soube desde o primeiro dia de trabalho. Ele havia me chamado a atenção desde a minha primeira janta no trabalho, quando entrou no refeitório falando com todo mundo e fazendo piada com seus colegas. Desde ali, meus olhos não conseguiram se desgrudar dele e eu nem sabia direto o porquê.

– Aham. É verdade que você é sobrinho da moça do RH?
– Hãn?
– É o que todo mundo tá falando. – respondeu ele apontando para o nada.
– Então é por isso que o pessoal não fala muito comigo. Descobriram isso. – soltei uma risada sem graça.
– Então é verdade?
– Ela é minha irmã. Vim do Rio de Janeiro pra morar com ela aqui em Manaus.
– Ah, legal mano. – seus olhos desgrudaram dos cremes dentais por um segundo e me encararam junto com um sorriso largo. – Eu gosto dela. Gente boa.
– É sim. Uma das melhores pessoas desse mundo. – eu disse.
André estalou a coluna e bateu uma mão na outra para tirar o excesso de poeira. Ele me olhou de novo com o mesmo sorriso até que eu ficasse desconcertado.
– Vou beber água. Quer um pouco? – perguntou ele.

– Quero. – respondi, mesmo não querendo. Só queria ver se ele realmente traria para mim.

Acompanhei com os olhos todo o percurso que ele fez até o bebedouro. Reparei que ele era o único ali que ficava bem de bermuda e bota (que todos eram obrigados a usar, por segurança). Sua panturrilha era grossa, diferente dos outros operários que tinham as pernas mais finas que um cabo de vassoura e ficavam ridículos quando combinavam bermuda com a bota do trabalho. Sua bermuda de cor azul era chamativa, tanto quanto a sua bunda que marcava dentro dela de tal jeito, que eu não conseguia parar de olhá-la. Não era uma bunda enorme que chegava a ser feia, nem uma bunda feminina, mas sim uma bunda de homem e bonita o suficiente para me fazer admirá-la. Quando ele voltou, entregou-me um copo cheio até a boca com água. Agradeci e bebi de uma vez só, pois de repente eu havia ficado com sede.

Eu sabia que tinha que fazer o meu trabalho, mas decidi esperar mais um pouco e continuar ali no meio daqueles paletes de madeira cheios de mercadorias prestes a serem carregadas para os caminhões. André não era do tipo que ficava calado. Sempre que um assunto se encerrava, outro era posto na berlinda. O tempo passou voando e quando percebi, eu já havia passado pouco mais de quinze minutos conversando com ele. Voltei para o meu trabalho e dele não consegui mais largar até o horário da saída, o que me deixou chateado, pois eu queria poder conversar mais um pouco com o meu mais novo amigo.

Durante muitos dias eu pausei o meu próprio trabalho para bater papo com o André. Ele era divertido, me fazia rir e me contava boas histórias. Qualquer encontro aleatório e sem querer no meio do armazém era motivo para pelo menos um minutinho de papo, e eu amava isso.

Com o tempo eu fiquei viciado em André. Ele era o homem mais incrível que eu havia conhecido. Com seus 22 anos, dois anos mais velho que eu, ele tinha uma bagagem repleta de histórias incríveis. Começou a trabalhar aos 15 anos, pois queria ser independente e construir sua própria casa, aos domingos ele se juntava com sua mãe e distribuía sopa para os mais pobres da região onde morava, gostava de ficar em casa assistindo filme ou jogando vídeo game, praticava boxe e jogava futebol. A cada dia que passava mais eu me encantava pela sua humildade e pelas suas histórias. André era um cara simples, que não precisava de muito para viver, com pouco conhecimento das coisas, mas encantador ou pelo menos ele queria que pensasse isso.

Na véspera do natal, André me chamou num canto escondido do armazém e me entregou um papel.

– Escrevi um bilhete pra você. – disse ele mostrando um pequeno papel dobrado entre os dedos. O sorriso largo fazendo seus olhos quase fecharem era encantador… – Geralmente eu mando uma mensagem, mas como ainda não tenho seu número…

– Ah, obrigado André. – peguei o bilhete, mas não o abri. – Vou ler em casa.

– É pequeno e muito humilde, mas é com muito carinho. – disse ele pegando o bilhete da minha mão e o colocando no bolso da minha blusa, em seguida fazendo um breve carinho no meu ombro.

>“Oi Sr. Lucas, tudo bem. Passando aqui só pra desejar um feliz natal pra você e sua família, e também pra dizer que você foi a melhor pessoa que eu conheci esse ano e que é meu melhor amigo no trabalho. Você faz o meu trabalho ficar melhor. Abraço, mano.”<

Suspirei. Ri. Gemi. Lacrimejei. Tudo ao mesmo tempo. Minha felicidade atingiu o seu máximo apenas com um bilhete de um amigo do trabalho. Foi ali que eu percebi que eu provavelmente estava me apaixonando por ele. Não vi a hora de poder voltar para o trabalho e lhe entregar um bilhete como resposta. Não via a hora de poder ouvir sua voz novamente. Não via a hora de poder ver seus olhos quase fecharem por causa do seu sorriso largo. Eu não via a hora de poder ficar entre seus braços.

Nossa amizade já estava em outro patamar. Trocar bilhetes virou algo frequente, já que não podíamos passar o dia inteiro conversando. Eu sabia que jamais poderia esperar ter algo além de amizade. André era hétero e morava com sua namorada já fazia um tempo. Como eu poderia esperar algo dele? Mesmo assim, eu ficava feliz toda vez que recebia algum tipo de carinho dele.

Um dia, recebi um bilhete dele com várias perguntas para responder. Eram perguntas bobas, sobre o que eu gostava de fazer, pra que lugar eu viajaria e quem levaria junto, o que seria um dia perfeito e coisas do tipo. Sobre como seria um dia perfeito para mim, respondi que seria um dia inteiro junto de um amigo querido, tomando banho de piscina, conversando deitados no grama e uma madrugada cheia de filmes. É claro que esse amigo querido se tratava dele, mas imaginei que ele não fosse sacar. As duas últimas perguntas foram as que me deixaram surpreso: “Lucas, você tem namora? Você já se apaixonou alguma vez?”. Quase caí pra trás quando as li. Porque ele queria saber aquilo? Por quê? As respondi dizendo que não tinha namorada, é claro, e que eu já tinha me apaixonado sim e que estava apaixonado no momento, inclusive.

No verso do mesmo papel eu escrevi algumas perguntas para ele. Na verdade eu praticamente plagiei as perguntas que ele tinha feito para mim, a única que realmente importava e que eu queria saber, era a última.
“André, você já se apaixonou alguma vez ou está apaixonado?”

Eu precisava saber a resposta, pois no ápice da minha loucura apaixonada, eu já estava achando que talvez ele pudesse sentir algo por mim, mesmo sendo hétero. A resposta talvez não me dissesse nada, mas eu não pensei nisso. Eu só queria saber a resposta. E ela chegou mais rápido do que eu esperava, e não por bilhete…

– Você perguntou se eu estou apaixonado? – disse ele se apoiando na sua empilhadeira e olhando para mim enquanto eu tremia por dentro. Uma mecha de seu cabelo escapou e ele a colocou para trás novamente. – Você sabe que eu tenho uma namorada…

– Eu sei, imaginei que você… – ele me interrompeu.

– Nunca fui de me apaixonar muito não, mas acho que eu estou me apaixonando agora e não é pela minha namorada. – ele deu uma piscadela e no mesmo segundo alguém gritou o nome dele. – Ah, e eu tenho certeza que você ainda não me contou tudo sobre você. Falta algo importante e eu quero saber. Depois a gente conversa.

Um misto de sentimento me consumiu durante o dia inteiro. Ele estava se apaixonando por mim? Como isso poderia acontecer? Um homem hétero, completamente másculo, que joga futebol e pratica boxe nos fins de semana. Como ele poderia se apaixonar por outro garoto? E o que ele quis dizer sobre eu não ter contado o mais importante pra ele? Na verdade eu sabia, mas eu não falaria até ter certeza do que ele queria ouvir.

Naquele mesmo dia perguntei a ele quem era a sortuda por quem ele estava apaixonado, mas ele não quis responder. “Respondo se você me disser primeiro por quem você está apaixonado.” Foi o que ele disse. E eu amarelei. Não tive coragem de dizer que estava apaixonado por ele. Eu ainda não tinha nem contado para ele que eu era gay, apesar de ser óbvio. Preferi encerrar o assunto, pois eu não falaria sobre a minha paixão antes dele de maneira alguma e foi aí que ele reclamou mais uma vez…

– Você não fala nada pra mim! É assim que você se diz meu amigo?
– Eu sou seu amigo. E eu falo as coisas pra você sim.
– Não fala não. Desde sempre você fala muito pouco sobre você, eu é que falo tudo o tempo todo. Você não tem que ter medo de se abrir para mim.
– Me diz o que você quer saber. – eu disse, suplicando em pensamento para que ele perguntasse logo o que ele queria saber, pois eu não conseguiria falar sem que ele perguntasse se sou gay.
– Você sabe.
– Não…
– Assim não dá pra ser teu amigo. Você não me fala nada. Eu vou embora.

– André… – ele disparou com sua empilhadeira pra longe de mim e voltou para seu trabalho.

Bom, tive que escrever um bilhete para ele me assumindo gay. Eu tinha certeza que era disso que ele estava falando, ele queria que eu me assumisse para ele, mas eu não tinha coragem, pois tinha medo de que ele se distanciasse de mim, mesmo com a nossa amizade sendo forte. Depois da nossa leve discussão sobre eu não me abrir pra ele, nós não nos falamos mais. Segurei aquele bilhete por horas até conseguir entregá-lo, e só o fiz exatamente na hora em que eu estava indo embora. E assim que soltei o papel na mão dele, me arrependi.

No dia seguinte, passei o dia fugindo dele, pois tive medo de sua reação, medo de ouvi-lo dizer que não poderíamos mais ser amigos, mas não adiantou fugir. Ele me encontrou. Eu estava escovando os dentes no banheiro quando ouvi o som da sua empilhadeira ficar mais alto, pensei em me esconder, mas não deu tempo e ele entrou no banheiro quando eu estava lavando minha boca. Ele me olhou através do espelho, olhei pra ele. Ele sorriu, mas não aquele sorriso largo, seus olhos continuaram visíveis…

– Eu li o seu bilhete. – ele caminhou até a pia do meu lado e continuou me olhando através do espelho. Ele tirou um papel do bolso, rasgou e jogou no lixo. – E escrevi um pra você também, mas nem vou te entregar. Vou falar aqui agora.
– Pode falar.
– Eu ia te falar ontem, mas você entregou o bilhete e saiu correndo. Tava com medo de mim? – ele sorriu. Agora sim, aquele sorriso. – Eu sei que você é gay, antes mesmo de me contar. E nada vai mudar entre a gente, vamos continuar amigos. Não precisa se preocupar.
– Obrigado. – eu disse sorrindo.
– A gente deveria ir ao cinema qualquer dia desses.
– Acho uma ótima ideia.
– Depois a gente combina melhor. – ele piscou pra mim e saiu.
Foi só então que eu respirei direito. Fiquei tenso até meus músculos doerem. Lavei meu rosto e saí do banheiro como se tivesse ganhado na loteria. Feliz por não ter perdido a amizade dele e mais ainda por lembrar que talvez ele pudesse estar se apaixonando por mim.
– Você ta cheiroso hoje, mais do que nos outros dias. – disse ele aproximando seu rosto.
– Mudei de perfume. Gostou?
– Bastante. Ta muito cheiroso, nossa senhora. Que cara cheiroso. Só vou te chamar de cheiroso agora. Posso?
– Pode ué.
– Vai ser nosso segredo. Seu apelido secreto. – disse ele piscando pra mim.

Oh céus! Ele era tão charmoso. Seu cabelo para trás brilhando por causa do gel, seu sorriso largo, seus dentinhos curtos, seus braços grossos. Sem falar naquelas pernas grossas com pelos escuros, seu peitoral salientando sobre o uniforme, sua bunda redondinha… Ah, como ele era atraente para meus olhos… Naquele mesmo dia insuportavelmente quente, eu contei para ele que eu não era como a maioria das pessoas. Eu não gostava de pegação em festas e muito menos de marcar encontros pela internet, até gostaria de ser assim, mas não era. Eu contei que eu era complicado e que não era do tipo que faz sexo sem sentimento. Eu contei pra ele que eu precisava muito mais de sentimento do que desejo para me entregar e esse talvez tenha sido um dos meus maiores erros…

– Imaginei. – ele riu.
– Imaginou? – perguntei fazendo uma careta.
– Uma vez eu disse que você era muito fechado e muito certinho. Lembra?
– Você fala isso sempre. Me enche o saco.
– Hahaha. Eu falo porque você é certinho mesmo e acabou de provar. Evito falar muita coisa contigo por causa disso.
– Não tem que evitar. Você pode falar qualquer coisa, comigo.
– Eu não. Você esconde um monte de coisa e é muito certinho, não posso falar certas coisas. Você pode ficar chocado. Não quero tirar sua inocência.
– Que besteira.
– Então se abre pra mim. Por quem você está apaixonado? – perguntou ele.
– Primeiro você fala, depois eu.
– Ta vendo? – disse ele rindo. – Vou embora.
– Não. Fica aqui. Depois eu te falo.
– Me fala agora.
– Não.
– Tchau.
– Eu juro que eu vou ser completamente franco com você.
– Vai mesmo?
– Vou! – eu disse sem pensar. – Vou escrever a carta mais sincera da minha vida pra você. Te juro. Vou falar tudo o que tenho pra falar em uma só carta e te trago amanhã.
– Eu vou cobrar! Quero a carta amanhã, hein. – disse ele apontando o dedo pra mim e rindo.
– Deixa comigo.

E eu escrevi a carta mesmo. Às 2:30 da madrugada eu vomitei em forma de palavras tudo o que eu sentia por ele. Joguei naquela carta tudo o que eu sempre disse pra mim mesmo que jamais faria na vida. Falei sobre como meus olhos se interessaram por ele desde o primeiro dia na empresa, sobre como me apaixonei muito mais pela pessoa que ele é do que por fora. Eu simplesmente me entreguei e me abri como nunca havia feito. Agora não havia mais segredos, não havia mais pensamentos secretos sobre como eu amava o seu jeito e a sua história ou sobre como eu amava a forma de seu corpo. Eu havia escrito a carta mais sincera da minha vida.

Minha irmã, que trabalhava na mesma empresa, sabia que eu estava apaixonado por um colega de trabalho, só não sabia da proporção e nem de que eu e André estávamos avançando na amizade a cada dia. No dia em que eu estava com a carta na mão, esperando o André chegar para poder entregá-la, minha irmã me telefonou e me alertou: “Eu sonhei que você chegava em casa aos prantos, chorando muito porque o André tinha acabado com a amizade de vocês e tudo isso porque você havia se declarado pra ele…”. Fiquei em choque com aquilo, mas não foi o suficiente para me desencorajar. Agora a carta já estava escrita e prometida. E assim eu a entreguei para ele sem medo do que poderia acontecer. No fim do trabalho, eu tive a resposta dele escrita em um pequeno bilhete. E naquela noite eu realmente cheguei em casa chorando muito. No bilhete dele só tinha uma frase: “Eu sinto o mesmo por você”.

– Você ficaria comigo? – perguntou ele me olhando nos olhos.
– É claro. Só não sei como a gente vai fazer isso. A gente trabalha muito. Não temos tempo pra quase nada. Hahaha.
– A gente dá um jeitinho. – ele piscou. – Que tal a gente ir ao cinema?
– Eu acho ótimo. Faz tempo que não vou.
– Mas não pode ser no fim de semana, porque senão minha namorada vai achar ruim. – ele estendeu o braço e fez carinho em minha orelha. – Vou pedir uma folga e te aviso. Aí você pede também.
– Ok. – sorri involuntariamente enquanto imaginava nós dois em um encontro.

Quase três semanas se passaram e ainda não tínhamos ido ao cinema. Vez em quando eu o lembrava do cinema e então ele dizia que ainda não tinham agendado uma folga pra ele. E eu continuava ansioso para o dia em que eu teria mais privacidade com ele.

Com o tempo, tratei de me soltar mais com ele. Eu já conseguia ouvir suas histórias sobre sexo sem ficar roxo de vergonha e conseguia até comentar algumas coisas e rir, mas é claro, tudo encenação, pois por dentro eu estava tremendo. Eu estava bom em conseguir parecer mais adulto e mais seguro na frente dele
Agora eu já me sentia bem ao lado dele, ainda perdia o ritmo da respiração sempre que ele chegava perto, mas ainda sim era algo bem mais controlável. Eu podia tocar nele sem medo, com cuidado e sempre com um motivo para que ninguém desconfiasse. Tocava seu antebraço grosso onde os músculos se flexionavam sempre que ele digitava algo no coletor de dados e em seguida seu cheiro ficava em minha mão. Uma vez ele me pediu para tirar algo das suas costas que estava o incomodando, e pra isso ele tirou a camisa para que eu olhasse o que era. Não havia nada, mas eu disse que havia formigas, só porque eu queria passar a mão naquelas costas largas e levemente suadas. Seu cheiro era bom, uma mistura de suor com perfume. Cheiro de homem, que me fazia imaginar mil coisas sempre que eu o via andando com seu jeitinho marrento.

André me conquistava mais a cada minuto de conversa escondida pelo trabalho. Suas atitudes e preocupações, nossa intimidade e cumplicidade no trabalho me faziam achar que éramos quase namorados. Uma vez ele me pediu uma foto, pois queria guardá-la com carinho em sua casa, outra vez ele brigou comigo porque eu não tinha comido nada durante o dia inteiro, disse ele que eu deveria me alimentar melhor. O que era verdade, pois eu praticamente não comia nada, mas isso é normal, não? Dizem que quando estamos apaixonados nosso apetite evapora. Independente disso, dizer que não havia almoçado era um ótimo começo de conversa, pois ele sempre brigava e demonstrava sua preocupação. Eu adorava a ideia de ter ele cuidando de mim.

– Oi, meu cheiroso. – disse ele se aproximando e olhando para os lados, mas nós estávamos sozinhos durante nosso intervalo na área de lazer. – Tudo bem?
– Oi. – escancarei meu sorriso. – Tudo sim e você?
– Eu acho muito bonitinho, esses seus dentinhos separados. – disse ele sorrindo daquele jeito. – Enfim, eu trouxe uma coisa pra você.
– O que você trouxe?
– Eu odeio essa pulseira de fita que você usa no pulso, ela é feia e não tem significado algum, não é?
– É! – eu ri. – Mas eu gosto de estar com algo no pulso.
– Eu trouxe isso pra você. Arrebenta essa daí.

Ele tirou uma pulseira no bolso de sua camisa. Uma pulseira preta emborrachada com botões de pressão nas pontas. “Aliança de santidade” estava escrito nela. Ele segurou meu pulso e arrebentou a minha pulseira velha e colocou a nova no lugar, ainda segurando a minha mão ele disse:

– Não sabia se você ia gostar, mas queria te dar alguma coisa. É humilde, mas de coração.
– É claro que eu iria gostar. Gosto e dou valor a qualquer presente que recebo.
– Eu sei que você não é muito religioso e nem eu. – ele riu. – E também sei que isso é usado por casais, mas queria que alguma coisa simbolizasse a nossa amizade. Espero que você goste e use.
– Eu amei. Vou usar sempre.

E usei mesmo. Não tirei do braço de jeito algum. No primeiro dia, a pulseira estava com o cheirinho do amaciante de roupas que ele usa no uniforme, cheiro que acabei associando a ele. Passei o dia inteiro cheirando a pulseira para lembrar dele.

Mais dias se passaram e nós ainda não tínhamos saído para o cinema. Eu estava louco de ansiedade, pois queria beijá-lo no meio do filme, passear pelo shopping comendo sorvete e depois dormir com ele, mas esse dia parecia nunca chegar.

– Ainda não me deram folga. – disse ele pegando um palete alto com a empilhadeira. – Mas eu tenho uma ideia. Não sei se você vai gostar.
– Que ideia? Me conta.
– A gente pode se encontrar no vestiário. Aquele que fica nos fundos do banheiro, sabe? Ninguém entra lá.
– No banheiro aqui da empresa? – perguntei surpreso.
– É. Ninguém entra lá não. A gente pode fazer uma brincadeirinha rápida.
– Mas eu quero ir assistir filme no cinema com você. – eu disse o cutucando, pedindo atenção.
– Nós vamos ao cinema sim, eu só quero te conhecer mais um pouquinho antes de ir. Queria que você fizesse algo pra mim. – ele deu uma piscadinha e aproximou o rosto do meu. – Queria que você me chupasse lá no vestiário.
– Não sei. – respondei depois de absorver aquele pedido.
– Achei que você estivesse afim. – disse ele me encarando. – Achei que fosse topar.
– Eu acho isso tenso.
–Chupar?
– Não! Fazer isso no banheiro do trabalho.
– Ta vendo? Eu disse que você é certinho demais. Esquece o que eu disse, deixa pra lá.
– Espera aí. – eu disse pondo minha mão em seu braço suado. – Eu ainda não recusei e nem aceitei. Eu já te disse que ia deixar de ser certinho, não disse?
– Sim. To esperando.
– Eu nunca saí por aí me pegando com outros caras no banheiro. Sempre achei isso meio tenso. Eu já te falei como que eu funciono. – tentei organizar meus pensamentos rapidamente e tomar uma decisão. – Nós ainda vamos ao cinema, não é?
– Claro que vamos. É que hoje eu acordei com tesão e queria dar uma aliviada, e nada melhor do que fazer isso com você. – ele soltou uma risada abafada. – Eu só quero que você me chupe e nada mais, desse jeito a gente deixa o beijo e mais coisas para o dia do cinema, como garantia. Entendeu?
– Entendi. – murmurei. – André, posso te perguntar uma coisa?
– Pode.
– Tem mais algum garoto que você paquera aqui no trabalho? Você está fazendo isso com mais alguém?
– Claro que não. Ta doido? O único garoto que me interessa é você. Eu não sou gay. Cara, eu acho que você não tá tão afim de mim assim.
– Eu só quero saber. Tem certeza que não tem nem outra mulher aqui do trabalho que você esteja paquerando?
– Claro que não. Eu já te falei isso. É só você.
– Promete pra mim que você não irá paquerar ninguém nessa empresa enquanto eu estiver aqui? Promete pra mim? Você sabe como eu funciono, eu vou me sentir um lixo, vou me sentir apenas mais um e usado se você paquerar outra pessoa aqui. Eu preciso que você me prometa que eu sou o único, para que eu possa aceitar sua proposta.
– Eu prometo. Eu juro. Não tem mais ninguém, mano. Deixa de paranoia. Acho que você não me quer mais, não é? Deixa pra lá.
– Quero sim. Me fala quando te encontrar no vestiário. – minha respiração desregulou. – Eu vou.

Ele sorriu pra mim daquele jeito que eu gostava e sussurrou que iria me entregar um bilhete combinando um horário.
E eu fui mesmo me encontrar com ele no vestiário escondido do banheiro. Eu estava com medo. Sim. Com 20 anos na cara eu estava com medo de fazer sexo oral em um cara dentro do vestiário as escondidas. Talvez não fosse medo do sexo oral em si, é claro que não era isso, talvez fosse medo daquilo que eu estava me dispondo a fazer e onde iria fazer. Porque ficar com medo? Eu não estava fazendo nada de tão errado assim, afinal de contas o André não era um cara desconhecido, um cara que eu não sabia o nome ou de onde veio. Eu o conhecia muito bem e ele também me conhecia. Eu estava apaixonado por ele e ele apaixonado por mim. Porque não ir encontrá-lo no vestiário e além do mais, aquilo seria só uma prévia do que teríamos no dia em que fossemos para o cinema. Aquilo era apenas algo para matar a ansiedade dele, e logo logo eu mataria a minha vontade também. Ele me prometeu um encontro normal, com direito a cinema, passeio no shopping e uma noite inteira juntos. Eu seria recompensado.

Ao todo me encontrei com ele no vestiário da empresa três vezes durante três dias seguidos, mas nunca ficávamos muito tempo lá. Nunca terminávamos, pois sempre alguém entrava no banheiro, ou o chamava para o trabalho. Estava sendo divertido nos encontrar às escondidas e depois voltar ao trabalho, trocar olhares enigmáticos e secretos enquanto ninguém sabia de nada. Por enquanto aquele era o jeito que eu poderia tê-lo para mim e eu estava feliz com aquilo.

Estava chovendo muito naquela noite e o trabalho não estava tão pesado para nenhum de nós dois. Era o momento perfeito para mais um encontro no vestiário, o momento perfeito para finalizarmos do jeito que ainda não tínhamos conseguido.

– Hoje ninguém vai nos chamar porque quase não tem trabalho. Te encontro no vestiário em cinco minutos. Vai na frente. – ele piscou pra mim e saiu.

Fui para o vestiário e o esperei no escuro, como sempre fazia. Ele entrou. Vi a sombra de seu corpo largo e suspirei involuntariamente. Decidi que iria beijá-lo naquela noite, eu não queria esperar até o dia do cinema pra isso, eu precisava sentir seus lábios, sentir seu hálito, mas ele já chegou abrindo o zíper de sua bermuda e dizendo que não podíamos demorar. Não pude beijá-lo. Me ajoelhei, molhando minha calça naquelas poças d’agua e abaixei sua cueca boxe. Sua mão em minha cabeça fez com que eu não hesitasse em colocá-lo em minha boca. Até o fundo. Em movimentos rápidos. Passeei minhas mãos até onde pude em seu corpo. Suas coxas peludas, sua panturrilha musculosa, sua barriga macia e sua bunda carnuda, pedaços do seu corpo que eu ansiava poder explorar muito mais.

Não era surpresa pra mim aquele jeito feroz dele, eu já tinha provado daquele sexo oral nos dias anteriores. Eu conseguia ouvi-lo gemer, mesmo que ele o fizesse bem baixinho. Ele pulsava dentro da minha boca enquanto sua mão segurava minha cabeça e conduzia todos os movimentos. Seu corpo vibrou e um gemido grosso e forte saiu de sua boca, assim como aquele líquido espesso desceu pela minha garganta sem que eu decidisse querer ou não.

Eu tinha gostado. Era a forma como eu podia tê-lo para mim e agora o próximo passo seria o nosso passeio juntos e aquilo que fazíamos no vestiário se repetiria, mas de outra forma e com muito mais coisas. Ele foi até uma das pias e se lavou, enquanto eu o olhava do outro lado do banheiro.

– Só acho que a gente precisa marcar logo esse cinema hein. – eu disse com um sorriso no rosto. Feliz pela nossa intimidade. Ele me olhou de lado e com um sorriso estampado no rosto, mas não aquele sorriso que eu gostava. Era outro.
– Não sei não. A gente decide isso depois. – ele enxugou a mão e saiu.
– O que André? Como assim? – mas já era tarde. Ele já tinha saído.

Aquele André que sentia o mesmo por mim? Não existia mais. Encontros no vestiário? Não aconteceu mais. Carinho e vários minutos de conversa? Nunca mais. Tudo havia desaparecido de um dia pro outro. Quem era aquele cara chamado André?

– Amanhã eu não venho trabalhar, me deram folga. – disse ele esticando as pernas pra fora da empilhadeira.
– Então eu vou pedir folga também.
– Eles não vão te dar folga no mesmo dia que eu, Lucas.
– Vão sim. Eu fiz muitas horas extras pra justamente pedir folga no mesmo dia que você. Eles não podem me negar uma folga.
– Duvido muito.

E eu pedi a folga. De primeira o supervisor não quis me liberar, mas eu insisti. Disse que eu tinha muitas horas extras não remuneradas e que queria uma folga no dia seguinte de qualquer jeito. Eu não desistiria daquela folga, era a minha chance de finalmente sair com o André.

– Eles me deram a folga, André. – eu disse.
– Eu não vou para o cinema com você amanhã.
– Como não? Você me prometeu.
– Estou pensando em ficar em casa amanhã, descansando. A gente marca outro dia.
– Não haverá outro dia tão cedo. Você sabe disso.
– Deixa seu número anotado em um papel aí que se eu decidir sair eu te telefono.
– Você não vai ligar. Eu já te dei meu número no mínimo quatro vezes e você nunca salvou. Você prometeu que ia ao cinema junto comigo. Você me prometeu André. Eu fiz tudo o que você quis, tudo, esperando o dia em que a gente fosse sair…
– Não acredito que você está chorando. – disse ele rindo. – Para com isso.
– Cara, eu pedi uma folga só por sua causa.
– Ta parecendo um apaixonado. – disse ele rindo e manobrando sua empilhadeira, praticamente me ignorando.
– O que? – perguntei incrédulo.
– Você sabe que é uma furada se apaixonar por mim, não é? – disse ele e saiu andando em sua empilhadeira.
– Deveria ter me avisado antes. – eu disse para mim mesmo.

Mesmo não saindo com ele, eu tirei a minha folga na quinta e faltei o trabalho na sexta, pois ainda estava digerindo o que André havia me dito. Passei quase uma noite inteira chorando por causa dele e depois chorei por ser um idiota ao estar me permitindo chorar por ele.

Passei os três primeiros dias da semana seguinte esperando ele falar comigo, decidi não ir atrás dele para ver no que dava. Três dias completos que não trocamos uma palavra sequer, o que só provou o que eu estava pensando.

– André, eu quero conversar com você hoje. – eu disse.
– Pode falar.
– Agora não. Hoje nós vamos sair cedo, a gente pode ficar lá fora até as nossas vans chegarem. Pode ser? Vou te esperar na máquina de bater cartão.

– Tudo bem. – ele deu um tapinha nas minhas costas e saiu.

Quando o relógio marcou 19:20, o trabalho foi encerrado, mas todos continuaram dentro da empresa, pois as vans ainda não tinham chegado. De dentro da sala de administração eu pude ver o André sentado em algumas caixas junto com a Gabriela, uma mulher que havia sido contratada a pouquíssimo tempo. Fiquei observando os dois discretamente durante todo o tempo, uma pena eu não poder escutá-los.
19:30. 19:55. 20:10. 20:25.

E então eles levantaram juntos e caminharam em direção a saída, mas não saíram. Voltaram a se sentar e a conversar. Imaginei que ele tivesse esquecido sobre a nossa conversa. Desliguei meu computador, peguei minha mochila e saí da sala. Passei por eles e olhei dentro dos olhos do André, que não pareceu captar minha mensagem. Parei e esperei ao lado da máquina de bater cartão, como havia combinado com ele.
20:40.

André levantou. Me enchi de esperanças de que ele estava vindo ao meu encontro, mas a Gabriela também se levantou. Ela passou do meu lado e bateu o cartão, em seguida ele fez o mesmo…

– André. – murmurei enquanto ele passava na catraca.
– Boa noite, Lucas. – virou para mim e deu uma piscadela.
– Filho da puta. – murmurei para mim mesmo.

Porque ele estava saindo antes de todo mundo e junto com Gabriela? Porque ele ignorou o meu pedido? Esperei alguns minutos e decidi bater meu cartão e sair também. Ficaria lá fora esperando as vans e olhando o André conversar com Gabriela até ele se tocar de que tinha um compromisso comigo e não com ela.

Passei pelos seguranças da portaria, fui revistado e então saí de fato da empresa. Três vans chegaram para esperar os trabalhadores, mas não havia ninguém lá fora, além de mim. Onde estava o André e Gabriela?

Já era 21:15 e eu estava na porta da van, prestes a ir embora, quando o vi saindo dos fundos da empresa. Não havia ninguém por lá naquele horário e todas as luzes estavam apagas. Lá vinha ele caminhando calmamente e ficando cada vez mais nítido conforme se distanciava da escuridão. Gabriela estava junto e conversava e gesticulava como ninguém. Estava animada. Ele passou pela revista dos seguranças e esperou até que ela também fosse revistada. Eles continuaram conversando animadamente enquanto iam juntos para a outra van. Ela me encarou. Franzi a testa, achando aquilo estranho. Logo em seguida ele me olhou, sorriu, piscou pra mim e entrou na sua van, esquecendo de tudo o que eu havia falado pra ele um dia.

E eu não recebi o meu abraço, não tive o prazer de estar nos braços do cara por quem havia me apaixonado, não recebi um beijo na bochecha ou na testa, não senti seus lábios nos meus, não assisti a um filme com ele, não dei altas risadas passeando pelo shopping, não fiz amor com ele, não senti o corpo dele no meu. Eu não tive nada do que eu um dia ansiei. Tudo o que eu tive foi satisfazê-lo de uma curiosidade ou seja lá o que?
Como se eu estivesse prestes a morrer, um filme passou pela minha mente. As cenas onde eu pedia pra ele prometer que jamais iria fazer aquilo comigo e que eu seria o único. Me senti um como um copo descartável. Usou para suas vontades, amassou, jogou fora.

Como um suicida eu me joguei do penhasco. Me joguei com toda força, pois olhando lá de cima tudo o que eu via era a imagem do cara que eu estava apaixonado e era tão bonito no começo, mas conforme fui chegando mais perto tudo foi escurecendo, até que no fim acabei em pedaços estilhaçados no chão. Eu havia vomitado todos os meus sentimentos mais profundos para ele, ele foi dono de muitos sonhos meus durante a noite e de longe isso foi a coisa mais humilhante que já fiz por alguém. O que antes parecia recíproco começou a desaparecer tão rapidamente quanto uma estrela cadente. E lá estava eu, olhando para o céu a espera de pelo menos uma pequena luz restante daquela estrela cadente, mas é claro que ela não voltaria. Ela nunca existiu.

Oito meses se passaram desde que pedi demissão e voltei para o Rio de Janeiro. Não posso dizer que sofro por ele ainda, mas as vezes eu ainda sonho com ele e também ainda não consegui jogar fora os seus bilhetes e a pulseira que ele me dera. Eu sei que não ficarei assim para sempre, mas ele me mudou e deixou uma cicatriz imensa no meu coração da qual eu sempre lembrarei. Não desejo mal a ele, desejo apenas o que ele merece e espero que um dia eu possa ter um amor que me faça apagar essa história.

Fim

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