Contos

Contos de Garotos – Capítulo 17 – Meu Rei, Eu Sou Seu Escravo

Contos de Garotos

Capítulo

XVII

Meu Rei, Eu Sou Seu Escravo

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“A felicidade não esta em viver, mas em saber viver. Não vive mais o que mais vive, mas o que melhor vive, porque a vida não mede o tempo, mas o emprego que dela fazemos”. (autor desconhecido)

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“Se naquela noite eu fosse capaz de dominar minhas ações, talvez eu não ansiasse tanto pela caluniosa liberdade que sustenta minha alma… Talvez”. (Kim)

Primeiro dia do segundo ano letivo. Dois anos antes.

Era uma noite chuvosa de Fevereiro, os alunos de Saint Rosre estavam dentro de seus dormitórios, protegendo-se do frio que assombrava a imensa arquitetura de pedras. Num dos quartos, dois garotos estavam conversando, cada um deitado na sua cama, enrolado por suas cobertas.

– Que frio do inferno – Kim reclamou, tremendo levemente.

– Eu gosto – Kirios disse, arrumando seus cabelos louros que estavam presos num alto rabo de cavalo.

– Você gosta de tudo que é estranho – comentou.

– Como será esse segundo ano? – Kirios indagou, soltando um longo suspiro – eu queria sair desse colégio na verdade.

– O ano passado foi um choque. Eu não pensei que esse colégio seria tão cruel – Kim murmurou – eu nunca briguei tanto na minha vida.

– Ah, o primeiro idiota que tentou encostar a mão em mim eu o mordi com tanta força que até agora sinto o gosto de sua carne.

– Que nojo, Kirios. Não me lembre, pois eu o vi fazendo isso – reclamou, movendo sua cabeça numa negativa, tentando se livrar da imagem que veio a sua mente.

– Meus pais estavam comentando que querem colocar meu irmão aqui quando ele fizer quinze anos.

Kim olhou para seu colega com apreensão. Até agora não entendia a relação que Kirios tinha com seu irmão menor, mas o loiro fazia comentários atípicos com relação ao seu próprio sangue.

– Não o deixe vim, então – sugeriu.

– Meus pais que mandam – disse – eles são uns idiotas.

Duas batidas na porta chamam a atenção dos dois garotos, que já ficaram desconfiados. Eles ficaram em silêncio, mas as batidas voltaram a incomodá-los.

– Eu sei que vocês estão aí calouros – alguém gritou do outro lado – abra a porta.

Kirios levantou-se rapidamente, correndo até seu armário, procurando alguma coisa. Kim ergueu-se e se aproximou da porta, abaixando-se no chão para olhar através do vão.

– Pela sombra dos pés, eu acho que são uns seis – informou – não, são sete, eu ouvi a voz do Renzo.

– Eles não desistem – Kirios murmurou – hoje é o primeiro dia ainda.

– Eles querem dar as boas vindas, Kirios.

Kim levantou-se de repente, dando alguns passos para trás. A porta começou a ser chutada e socada, pelos garotos que riam e pediam passagem. E a pequena estrutura de madeira não durou muito, sendo aberta num chute mais forte.

– Ora, ora, ora! Quem nós temos aqui – disse um dos garotos de cabelos avermelhados, que adentrou no quarto olhando para Kirios e Kim que estavam lado-a-lado.

– Os mais esquentadinhos – outro garoto disse, com um ligeiro sorriso no rosto.

– Juan, Mateo e Emiliano pegam o Kirios – disse o ruivo que se chamava Renzo – Reinaldo, Saulo, Solano e eu vamos cuidar do karateca nervosinho.

O instante seguinte foi de grande confusão e tensão. Os garotos pularam em Kirios, desviando-se de suas unhas e dentes. Era muito difícil pegá-lo sem sair verdadeiramente machucado. Depois de lutar muito, conseguiram prender os braços do loiro com uma corda fina.

A situação de Kim não era diferente, ele golpeava os garotos que também sabiam artes marciais, e, além disso, eles eram mais velhos, portanto tinham mais força e possuíam mais altura. O destino de Kim foi igual ao de seu amigo, com os braços amarrados.

Renzo abriu um largo sorriso vendo os dois calouros sentados no chão, com as faces avermelhadas e os cabelos desalinhados. Todos estavam ofegantes, tanto os calouros como os veteranos.

– O que vamos fazer com eles? – Saulo indagou, passando a mão pelas mechas aloiradas de Kirios.

– Vamos fazer uma votação – Renzo sugeriu – quem quer o loiro sádico levanta a mão?

Cinco garotos levantaram as mãos, exibindo um olhar divertido para Kirios que engoliu em seco. Renzo olhou para Saulo que não havia levantado a mão, lançando um olhar febril para Kim.

– Eu vou querer o karateca – Saulo disse – e você Renzo?

– Eu tenho um contrato, você sabe – sorriu – eu só estava ajudando vocês. Agora eu vou indo. Saulo, tome cuidado, já que esse aí morde também – avisou, apontando para Kim.

O quinteto ergueu Kirios num único puxão e o jogou contra a parede lisa e fria. Suas mãos ávidas de desejo começaram a arrancar as poucas roupas que o louro usava. O que não conseguiram retirar, eles acabaram rasgando, deixando-o nu finalmente.

– Quantas cicatrizes! – Mateo exclamou, ele era o mais alto do grupo – você é realmente estranho, garoto.

– Solte-me e verá que seu corpo ficará igual ao meu – vociferou.

– Vamos fechar essa matraca – Reinaldo sugeriu – eu não quero ser mordido e nem ouvir as sandices desse pirralho.

Os garotos pegaram uma meia e um pano que estavam no armário. Eles enrolaram o par de meias no formato de uma bola e enfiaram na boca do louro, depois passaram o pano pelos lábios, impedindo que ele a cuspisse.

Dois garotos do quarto ano apareceram no quarto, rindo alto ao ver quem eram as vítimas do quarto.

– Hei, hei. Tem muita gente aqui, vocês três venham ajudar a gente pegar o Julian e o Cássio – um deles disse – vamos lá.

Emiliano, Juan e Reinaldo resolveram deixar Kirios apenas com Solano e Mateo. Quando saíram do quarto, eles fecharam a porta, correndo pelos corredores.

– Vai cuidar do Kim sozinho, Saulo? – indagou Solano com desconfiança – não vá soltá-lo.

– Eu não vou soltá-lo – murmurou – e não sou eu que vou cuidar dele também.

– Não? – Mateo indagou com surpresa.

– Não, não. Uriel pediu para eu prepará-lo para ele, eu estava devendo um favor a ele – comentou.

Os frios azuis cobaltos de Kim pareceram assustados. Seu corpo arrepiou-se só de ouvir o nome do veterano, que era o terror da escola e o pior pesadelo de Kim.

Saulo sentou-se na cama e pegou seu telefone celular telefonando para o veterano, informando que já havia feito o favor. Quando encerrou a ligação disse:

– Eu não queria estar na sua pele, Kim!

Mateo e Solano deram de ombros, voltando suas atenções para Kirios. As mãos geladas dos veteranos tatearam seu corpo, passando os dedos por suas cicatrizes. Os braços de Kirios estavam amarrados atrás de suas costas e quando foi jogado na cama, caiu de qualquer jeito, não conseguindo evitar o choque.

A sensações que povoavam o interior do loiro não era felizes e muito menos otimistas. Ele sentia seu corpo ser explorado por mãos fortes e desejosas. Seu corpo não pertencia somente a ele, quando estava no Saint Rosre, seu corpo pertencia aos mais fortes.

Os lábios assim como as línguas úmidas e quentes resvalavam por seu dorso, enquanto as quatro mãos espalmadas pela sua pele dourada tratavam de lhe dar alguma forma da prazer ao mesmo tempo em que elas lhe torturavam.

– O próximo será você, Kim – Saulo disse, tocando na mecha castanha avermelhada do karateca – a não ser que queira brincar comigo. Eu vou ser delicado, diferente de Uriel.

– Por que você não me solta? Assim eu brincarei bastante com você – sugeriu, com uma expressão carregada de antipatia.

Um tabefe foi desferido no rosto do karateca que mordeu sua língua com o baque sentindo o gosto amargo do sangue que invadiu sua boca. Ele fechou os olhos e ficou a ouvir os gemidos abafados do seu colega de quarto.

– Kirios, Kirios… você é uma graça gemendo – Mateo riu alto, deslizando sua mão pelos braços delineados do louro – você poderia ser bonzinho e nós tiraríamos essa mordaça.

– Não, Mateo. Eu não quero ser mordido – Solano proferiu, voltando a beijar o pescoço do calouro.

A porta do quarto abriu novamente, interrompendo os garotos. Kim engoliu em seco ao ver de quem se tratava, era Uriel que lhe olhava de jeito atroz com um divertido sorriso nos lábios. Ele tinha curtos cabelos castanhos claros. Seus olhos eram negros e profundos.

– Obrigado, Saulo – pronunciou-se, caminhando até o karateca, puxando-o pelo braço.

– De nada – sorriu o veterano – agora eu vou brincar com o Kirios também. Boa sorte com o nervosinho.

Uriel sorriu e fechou sua mão no cabelo castanho avermelhado de Maccario, começando a puxá-lo para fora do quarto, arrastando-o até o campus do colégio.

– Eu queria ser o primeiro a lhe dar boas-vindas – Uriel disse – sentiu saudade de mim?

– Se encostar a mão em mim de novo, eu vou te matar – vociferou.

A risada de Uriel viajou por todo o campus, ele continuou a arrastar o calouro até o prédio da escola, subindo a prolixa escadaria até o último andar, entrando na sala de química.

O corpo de Maccario foi arremessado contra algumas cadeiras, ele perdeu o equilíbrio e tombou para trás, sentindo seu corpo começar a ficar dolente por aquela fereza. O olhar de Kim parou na silhueta a sua frente, Uriel ajoelhou-se na sua frente e lhe desferiu um tabefe na face.

– Eu nunca vou te perdoar por ter retirado minha medalha de ouro no karate seu pirralho – murmurou.

– Hump! Você não sabe lutar direito – disse com altivez – você se acha o bom porque tem ajuda de outros aqui.

– Vamos ver quem manda agora – sussurrou.

– Solte-me e eu mostrarei para você quem manda – pediu – você não me enfrentaria numa luta mano a mano! Seu covarde. Está com medo de um calouro?

– Você fala demais, Kim – disse com agastamento, fechando seu punho e desferindo um soco na faceta do moreno que caiu estonteado para trás, sentindo sua cabeça colidir contra o chão.

Kim não disse nada, ele estava atordoado. Ele havia ganhado numa disputa de karate entre o campeonato de escolas. O favoritismo de Uriel foi tomado por Maccario no ano passado, quebrando a linha de vitórias consecutivas que Uriel desejava levar até o quarto ano.

Os braços de Kim foram soltos por uma lâmina afiada, Uriel se ergueu e deu alguns passos para trás, olhando para o calouro com irritação. Ele guardou a pequena e letal arma branca no bolso.

– Vamos ver quem é melhor – disse.

Com dificuldade, Kim se levantou, gemendo baixinho, tocando no seu maxilar que quase foi deslocado com a bestialidade do outro. A visão de Kim estava turva, ele não reagia muito bem ao que estava acontecendo e antes que pudesse processar a situação, um chute judicioso foi desferido contra seu fêmur.

– Reaja! – Uriel gritou.

O calouro foi ao chão de novo, ele olhou para Uriel que lhe sorria com orgulho. O veterano fechou sua mão num punhado de cabelos do menor e ergueu sua face, apontando a faca na direção de sua íris, chegou tão perto que Kim pensou sentir o metal lhe tocando.

– Vamos ver se vai continuar falando grosso depois de perder esse olho – cochichou.

A mão de Uriel foi lançada para trás, voltando com força na direção de Kim que se moveu instintivamente para o lado, desviando-se daquele ataque funesto. A respiração do calouro estava descompassada, seu coração bateu tão veloz que pensou que morreria. Ele quase havia perdido um olho. O que aquele garoto tinha no cérebro?

A brincadeira estava no seu limite. O olhar do veterano era frio e plácido, como de um assassino, sua mão não tremia e sua respiração estava pausada e compassada. Kim ergueu-se, caminhando para trás, um pé atrás do outro, tentando se sossegar. Se ele se desesperasse, ia cometer algum erro e o outro estava armado.

– Você deveria ver sua cara, Kim – sorriu – está morrendo de medo.

– Você é louco – falou baixinho, sentindo sua voz sair fraca – tudo por causa de uma medalha?

– Você não sabe como significou para mim – gritou – mas não se preocupe, eu não vou te machucar. Peça desculpas e lamba meus pés, Kim.

O calouro mexeu sua cabeça lentamente, mostrando sua negação. Os movimentos de Kim pararam ao encostar na janela de vidro, ele olhou para trás e depois voltou sua atenção ao veterano.

– Fim da linha – ele disse.

O silêncio era rompido pelos passos lentos de Uriel, a cada passo, Kim sentia seu coração descontinuar uma batida. Ele estava angustiado. O calouro tinha que admitir que estava verdadeiramente com medo do veterano. Aquele olhar felino, aquele sorriso frio, aquela mão firme que empunhava a faca, todos os detalhes atormentavam Maccario.

Os passos cessaram, os dois estavam numa distância mínima, se Uriel esticasse o braço, certamente perfuraria o peito do menor. E para o terror de Kim, os movimentos de Uriel voltaram, ele moveu seu braço na sua direção e o que veio a seguir foi uma seqüência de fatos em câmera lenta.

Kim fechou sua mão no pulso do veterano, ele virou-se de costas e o puxou para frente, sentindo o peito do maior bater contra seu dorso. Kim abaixou-se um pouco e com a outra mão puxou a gola da blusa de Uriel, impulsionando seu corpo para frente e o jogando por cima dos seus ombros.

O corpo maior voou para frente, rompendo a matéria, atravessando a janela de vidro. As partículas minúsculas de cristal voaram para todos os lados, Kim se protegeu com os braços para não cortar seu rosto, ele caiu sentado no chão.

– “O que foi que eu fiz?!” – pensou, caindo em desespero. Kim engatinhou até a janela, erguendo-se no seu parapeito, olhando para o corpo estirado no chão.

No minuto seguinte Kim estava descendo as escadarias velozmente, chegando até o gramado, encontrando o corpo do veterano que caiu em cima de um pequeno arbusto. Se a queda não o matou, talvez os galhos do arbusto tiveram a oportunidade disso, pois alguns galhos romperam a carne, rasgando-a.

A mão de Kim foi levada até sua boca, sentindo ânsia, ele cambaleou para trás e encostou-se na mureta do prédio, abaixando sua cabeça, sentindo seu estômago embrulhar. Acabou por vomitar um pouco e quando terminou, sentou-se, olhando para o nada.

– “Morreu… eu… matei… eu matei… Eu não queria… não foi de propósito. Eu… eu…” – seus pensamentos eram confusos, sem uma linha tênue que lhe trouxesse um pouco de paz mental.

– “Eu preciso sair daqui” – pensou de repente, erguendo-se e postando-se a correr pelo gramado, sem rumo, parecia que havia perdido a memória e não sabia onde se encontrava.

Por mais violento e hostil que pudesse ser, Kim não era um assassino. Era um adolescente revoltado que tinha carência de atenção de pais que lhe ignoraram em grande parte de sua infância. Era um bom lutador de karate, era ríspido com os demais alunos, mas isso não o fazia uma pessoa ruim, isso não fazia dele um assassino.

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“Viver é desenhar sem borracha”. (Millor Fernandes)
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E por mais que desejasse fugir, acabou ficando no mesmo lugar, olhando para o corpo estirado no chão. Ele se aproximou do veterano, tocando no seu rosto, virando-o devagar, encontrando-o de olhos abertos, sem aquele sorriso azucrinante.

Talvez naquele momento, Maccario desejasse que Uriel se levantasse, sorrindo debilmente, voltando a blasfemar. Mas a realidade era fria, penosa e sem perdão. Ele estava morto, não podia mudar o acontecimento. Ele o matou, não importava os fatos. Era um assassino!

– Eu preciso chamar alguém – falou baixinho, olhando para os lados, não encontrando nada que pudesse lhe ajudá-lo, e voltou a correr, agora tinha um desígnio.

– “Talvez ele esteja vivo… isso! Talvez se um médico… ah! Droga… ele está morto” – pensava em desesperança, correndo até o prédio da enfermaria, não encontrando nenhum funcionário.

– Maldito colégio – vociferou, voltando a correr pelo campus. Havia encontrado alguns alunos, mas não podia contar o que fez a eles – “o diretor” – pensou de repente, olhando para o prédio da secretaria.

Os passos de Kim o levaram ao prédio da secretaria, ele empurrou a porta de madeira e correu pelo lugar, procurando alguém que lhe acudisse. Ele adentrou no escritório do diretor, encontrando-o sentado numa cadeira, bebendo um pouco de vinho enquanto lia alguns relatórios.

– Está muito tarde para as visitas – a voz talhante de Maximiliano invadiu seus ouvidos.

– Di… diretor, eu…

– O senhor parece sobressaltado – falou com certa preocupação, colocando sua taça em cima da mesa e se levantando. Ele caminhou até Maccario, olhando a condição do seu aluno.

– O… eu… não queria… e… ele caiu e eu acho que morreu… talvez esteja vivo…

– Acalme-se – pediu, tocando nos ombros do menor – quem morreu?

– Uriel – respondeu, com a voz fraca.

Maximiliano viu o estado do menor, seus olhos estavam arregalados, as veias do pescoço saltavam e quando tocou em seus ombros, sentiu que ele tremia impetuosamente.

– Seu nome é Kim Maccario, certo? – indagou – o campeão do campeonato de karate. Eu me lembro de você, eu sinto que o Saint Rosre terá muitas medalhas na sua mão.

– O… o corpo… o Uriel…

– Diga-me, Maccario. Você cometeu algum deslize?

– Sim. Ele foi me atacar e quis me defender e o joguei pela janela, ele caiu, não era minha intenção – falou rapidamente, atropelando suas palavras.

– Além de derrotar nosso campeão no tatame, ainda deu um fim na sua vida? – indagou friamente – você é… maravilhoso.

Kim paralisou diante aquelas palavras tão indolentes, ele reparou que Maximiliano lhe sorria com bonança, as mãos que tocavam seus ombros se moviam num leve afago. Aquele não era o tratamento que esperava.

– Ma… maravilhoso?

– Sim, Maccario. Onde ocorreu esse ato pecaminoso? – indagou.

– Na sala de química – respondeu.

– Existe câmera nessa sala – avisou – eu só preciso ver o vídeo e dar meu julgamento, por favor, acompanhe-me.

O calouro começou a ser puxado para uma pequena sala que ficava no andar superior daquele escritório. Havia um grande sistema de vigilância por todo o colégio, Kim ficou estático, apenas seus orbes azuis moviam-se, olhando para as inúmeras televisões.

– Achei o canal, agora vamos retroceder – Maximiliano avisou.

O vídeo foi repassado para o terror de Kim, e agora ele poderia ver melhor a cena. Não havia áudio no vídeo, infelizmente, e a câmera pegava o veterano de costas, não dando para ver a faca que ele segurava.

– Ele está com uma faca! – Kim disse.

– Não dá para ver – Maximiliano comentou, analisando tudo com atenção.

Maccario fechou os olhos quando o vídeo estava chegando ao seu final, ele abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Quando o diretor terminou de assistir, seu sorriso alargou-se. Kim havia se defendido bravamente, com um olhar selvagem.

– Você é feroz – Maximiliano comentou – basta provocá-lo para que saia essa fera dentro de você.

– Eu… eu não queria – confessou, deixando algumas lágrimas escorrerem por seu rosto.

O diretor aproximou-se de Kim, tocando no seu queixo, erguendo o rosto choroso do calouro. Ele passou seus dedos por seu rosto, limpando as lágrimas.

– Não fez nada de errado, Maccario – sussurrou – eu faria o mesmo que o senhor. Eu vou cuidar disso, agora eu quero que vá para o seu quarto, tome um banho e não conte nada para ninguém. Entendeu?

– Mas…

– Depois eu falarei com o senhor. Apenas faça o que eu peço, isso já aconteceu antes nesse colégio. Eu sei lidar muito bem com a situação – confessou.

– Já… já aconteceu? – arregalou os olhos.

– Existem diamantes nesse colégio, e eu sei quando vejo um. O senhor é um deles. Eu não vou denunciá-lo, afinal o senhor é inocente.

– Eu… não sou inocente.

– Sim. O senhor é inocente, Maccario. O senhor só optou por sobreviver – disse – vá para seu quarto e quando perguntarem onde você estava, por favor, diga que estava comigo em minha sala.

As palavras de Maximiliano eram reconfortantes, permitindo que Kim esboçasse um breve sorriso. O calouro foi empurrado para fora da sala de vídeo, com a ordem de voltar para seu quarto.

E Kim obedeceu, sentindo-se um pouco melhor. Ele foi até seu quarto, quando entrou, fechou a porta, porém a trava estava quebrada pelo arrombamento anterior.

O moreno olhou para seu colega de quarto que estava jogado em cima da cama, Kim aproximou-se lentamente, sentando-se ao seu lado, tocando nas suas costas, deslizando seus dedos até seus braços que ainda estavam presos.

– Kirios eu fiz algo horrível.

– Kim… solte-me – pediu.

O karateca começou a desfazer o nó da corda, soltando o louro que se virou com um pouco de dificuldade, exibindo sua face avermelhada pelos incontáveis tapas que havia recebido.

– Eu vou cortá-los – disse em seguida – o que houve com você?

– Eu… matei Uriel – confessou.

– Você o quê? – indagou num grito.

– Matei…

– Matou?

– Sim. Eu o joguei da janela.

– Por quê?

– Ele me ameaçou com uma faca – disse – ele queria furar meu olho.

– Kim… você está falando sério? – indagou com perplexidade.

– Sim – disse, abraçando o corpo menor permitindo-se chorar no seu ombro. Kirios apenas o envolveu num abraço, estranhando aquele rapaz sensível que agora soluçava.

Kirios estava com dor, cansado e fragilizado, mas naquele momento acabou esquecendo tudo que lhe feria por dentro, permitindo abraçar o karateca, ouvindo seus murmúrios que foram repetidos incontáveis vezes naquela noite. Todavia, em nenhum momento vacilou apesar do sono e o cansaço que o consumia.

O naquele abraço caloroso Maccario acabou por adormecer, sendo acomodado ao lado do corpo desnudo do loiro que zelou por ele até que não agüentou, caindo no sono também.

Os raios de claridade invadiram o quarto, Kirios foi o primeiro a abrir os olhos, dando de cara com Maccario que estava próximo ao seu rosto. Ele levantou-se vagarosamente sem acordá-lo, caminhando até sua calça que estava no chão, vestindo-a.

– O que eu faço com você? – Kirios pensou em voz alta.

O louro voltou a se aproximar de Kim, tocando-o nos ombros, chamando-o baixinho para que acordasse. As pálpebras de Kim foram abertas, ele sentou-se na cama de repente, olhando para os lados com euforia.

– Acalme-se – Kirios pediu – o que aconteceu ontem refletirá nas suas ações hoje.

– Eu… preciso ir lá – falou, começando a se mexer.

– Você está fora de si – disse – eu tenho pena de você, Kim. Agora pare e pense. Por que você irá ao local do crime?

– Para… para ver…

– Para ver o corpo? Você já viu o corpo. Ele já deve ter sido removido. Agora todos estão falando sobre a morte de Uriel. Você disse que o diretor ia ser seu álibi, por alguma razão, pois todos irão acusá-lo – disse pausadamente – fique nesse quarto. Quando vierem falar com você, finja surpresa.

– Kirios… eu não posso fazer isso.

– Então se entregue a polícia e fique preso durante vinte anos por ter se defendido – disse – eu vou tomar banho, você sabe o que fazer.

O louro deixou o quarto, entrando na suíte. Kim jogou seu tronco para trás e ficou refletindo nas palavras de seu companheiro de quarto. E apesar de Kirios ser bastante estranho, na maioria das vezes ele sempre falava alguma coisa com sentido.

O que ele faria no local do crime além de ficar gritando e chorando aos sete ventos, sendo apedrejado pelos outros alunos? Não tinha motivo. Só se realmente quisesse assumir a culpa e ir preso por isso. Mas por que assumir a culpa se estava se defendendo? A resposta para isso viria de várias formas, pelo lado religioso, por alguma crença pessoal, ética, remorso… e por vários e outros motivos. Era uma questão estritamente pessoal.

Liberdade. Talvez Kim não pudesse deixar de pensar nela nesse momento, ele não poderia ser privado de sua liberdade. Agora pensava nos fatos, ele tinha a proteção do diretor, ele tinha um álibi e ninguém poderia julgá-lo. Talvez a situação não fosse tão desastrosa e apenas seu coração estivesse aflito.

O tempo passou e Kirios saiu do banheiro, enrolado numa toalha, ele olhou para seu colega de quarto com um largo sorriso. Pelo menos Kim estava pensando mais antes de agir. O louro se trocou e depois se aproximou do karateca.

– Tome um banho, Kim – disse – o dia de hoje não é o mesmo de ontem e será assim até você morrer.

– Eu sei disso, mas… eu não consigo esquecer aquela cena – disse.

– E quem disse que era para esquecer? – indagou com a voz rouca – nunca vai esquecer. Agora vá tomar um banho, você está com cara de quem matou alguém e não vai contar para ninguém.

– Não é hora para piadas – disse.

Kirios riu alto, jogando-se na cama do karateca.

– A mente humana é muito interessante – falou.

– Às vezes você não parece humano – disse, erguendo-se lentamente.

– Eu também acho – concordou, continuando a rir.

Maccario entrou no banheiro e só saiu quando terminou seu banho, que foi revitalizador. Kim colocou roupas limpas e penteou seus cabelos com os dedos, saindo do quarto ao lado de Kirios que achou melhor acompanhá-lo.

O assunto do colégio não era outro a não ser a morte de Uriel. Todos estavam indignados com o ocorrido, alguns garotos do quarto ano vieram falar com Kim e Kirios, mas como havia sido instruído, Kim falou que estava na sala do diretor, o que foi confirmado pelo próprio Maximiliano mais tarde.

No final da tarde, Kim foi até a sala do diretor, encontrando Maximiliano ao telefone. O karateca sentou-se numa das cadeiras e ficou aguardando que o diretor lhe desse sua atenção.

– O incidente com o senhor Uriel foi terrível. Um acidente tão vergonhoso, eu tenho que colocar algumas grades nas janelas a partir de agora, isso é tão deprimente – discursou com cinismo.

– Acidente?

– Sim. Um terrível acidente – sorriu – e como o senhor está se sentindo hoje?

– Mal – respondeu – eu posso perguntar por que está me ajudando?

– Claro – sorriu – eu gosto de garotos fortes, rebeldes, que quebram as regras. Eu não gosto dos fracos, Maccario. E o senhor é forte.

– Por isso? – indagou com perplexidade – um aluno seu morreu, ele era um garoto como eu.

– Pondere suas palavras e não se menospreze, Maccario – disse – o que aconteceu foi algo chamado seleção. A natureza que cuidou disso.

– E agora o que eu faço? Eu acho melhor sair do colégio – disse baixinho.

– Não, isso não cabe ao senhor – falou baixo – o senhor permanecerá aqui, vencendo os campeonatos, buscando medalhas para nossa casa. E fará alguns serviços para mim, afinal, eu lhe fiz um grande favor.

– Serviços? – indagou.

– Sim. Alguns serviços que apenas uma fera como você conseguiria executar – falou – falando francamente, você irá me obedecer. A não ser que deseje ficar vinte e três anos num presídio.

Kim ficou calado, olhando para os orbes daquele homem a sua frente. Não havia reparado como Maximiliano era insensível nas suas palavras carregadas de cinismo. Se alguém naquela sala era um criminoso, com certeza não era Maccario.

– O vídeo que mostra seus atos pecaminosos está guardado no cofre do meu banco, e algumas cópias estão com pessoas de minha confiança – revelou – eu espero que seja um rebelde bastante obediente. Eu sou seu rei, Maccario. E vamos deixar a formalidade e nos tratar como amigos.

– “Meu rei? Esse cara é um cretino” – pensou boquiaberto – “e eu sou o escravo dele”.

– Não faça essa cara, por favor – pediu, rindo baixinho, deliciando-se com aquela expressão perplexa.

– Vai ficar me chantagear?

– Maccario, como você é esperto – disse, batendo palmas.

– “Você? Já mudou o tratamento nas suas palavras. O que ele irá me pedir?” – indagou em pensamento.

– Alguns alunos tentam denunciar esse colégio por maus tratos, eu tenho a lista de garotos que desejam fazer essa denúncia. Eu quero que dê um susto neles.

– Um… um susto?

– Sim. Use sua ferocidade, eu os quero bem abatidos no final da tarde, entendeu? – indagou, dando uma piscada para Kim.

– Você quer que eu bata neles?!

– Ah, que bom que entendeu – sorriu – aqui está os nomes – disse, empurrando uma folha de papel onde tinha cinco nomes. Quando Kim os leu, obviamente os reconheceu, alguns eram seus colegas.

Maximiliano levantou-se e se aproximou de Kim, ele tocou nos cabelos do karateca, resvalando sua mão pelo rosto cândido, manchando-o com suas mãos carregadas de malícia. O dedão adentrou pelos lábios de Maccario, que estava impressionado demais para reagir.

– Não reaja – mandou num sussurro – apenas obedeça e eu cuidarei de você.

Kim foi puxado para um corredor estreito, adentrando em outro cômodo, que servia de descanso para diretor. Era um quarto amplo e luxuoso com uma incomensurável cama de casal no seu meio.

– O que quer de mim?

– Um pouco de carinho – disse.

A porta do quarto foi fechada e dali a única coisa que podia ser ouvida seriam os gemidos de dor e prazer que ecoavam pela arquitetura de pedra. Os pensamentos resolutos de Kim vacilavam, ele não sabia se estava fazendo o certo, e na verdade não queria pensar nas suas ações.

Na vida qualquer ação tinha uma reação, e qualquer favor tinha um preço. Tudo era equivalente, nada podia perder seu equilíbrio. A lei dos mais fortes continuava a persistir durante os séculos, os escravos, os oprimidos, os fracos, todos esses ainda existiam. Maccario sabia a qual ala se encontrava, ele era prisioneiro de sua própria ânsia pela liberdade.

E se a liberdade que lhe foi imposta pedia alguns favores, ele acabou por aceitar de bom grado, afinal a circunstância em que se encontrava poderia ser pior. Ele não tinha apoio de sua família, não havia suporte para sua dor, não havia mais esperança. Acabou por abraçar Maximiliano como sua única perspectiva de vida, suportando, obedecendo, sobrepujando-se aos desejos mais bizarros e sádicos do diretor.

Se suas ações refletiriam no futuro, Kim não tinha dúvidas de que se arrependeria no final. Talvez o ser humano realmente se transformasse quando matasse o outro. Essa era uma lenda urbana, talvez não tão incerta assim, talvez qualquer ser humano se transformasse um pouco quando tirasse a vida de outro. Ou enlouqueceria ou se tornaria um soldado, pronto para acariciar a vida sem ingenuidade.

A ingenuidade do adolescente de dezesseis anos morreu naquela noite fria de fevereiro. Seu coração fechou-se numa pedra, suas ações muitas vezes cruéis nem sequer mudavam a expressão do seu semblante impassível, suas palavras gélidas ecoavam por sua alma. Kim Maccario foi demudado, moldado, entrando no ritmo que a vida estava lhe impondo.

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“Talvez, se naquela sala eu me recusasse a esse contrato de favores, hoje eu não viveria nessa falsa liberdade. Eu sou um fraco… Não sou melhor que um rato a mendigar migalhas de algo que jamais terei… minha liberdade”. (Kim)

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Um tempo depois, caminhando pelo colégio, nas suas andanças noturnas. Kim parou para descansar, encostando-se em um tronco de árvore, olhando para o céu estrelado. Estava muito frio, mas gostava de sentir suas extremidades doerem, implorando por calor. Ele estava vivo, e o vento contra seu rosto lhe lembrava que estava livre.

– “Onde está minha liberdade nesse inferno?” – pensou – “eu queria que alguém… me salvasse”.

“Eu não sou um assassino…”.

OoO
“Há duas coisas a desejar da vida: primeiro, conseguir o que você quer e depois usufruir o que você tem. Só os muito espertos conseguem a segunda”. (autor desconhecido)
OoO
Continua…
Eis o nosso querido Kim Maccario e Kirios Javier nos dezesseis anos de idade, no terrível Saint Rosre. Dramático, não? Hahaha… mas não poderia deixar de ser. Uma falsa sensação de liberdade…

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